Operadoras querem propor diretrizes para o tratamento de autismo nos planos de saúde

Operadoras querem propor diretrizes para o tratamento de autismo nos planos de saúde

Abramge indica que caso a ANS não crie diretrizes para o tratamento de autismo, operadoras irão propor incorporação ao rol de procedimentos

Por Rafael Machado – Portal Futuro da Saúde

01/02/2024

O debate sobre o tratamento de autismo nos planos de saúde deve ganhar novos desdobramentos nos próximos meses. Isso porque a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) tem pressionado a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para criar diretrizes. Sem uma determinação mais clara, a entidade aponta que as próprias operadoras irão se movimentar para propor a inclusão de uma diretriz no rol de procedimentos e eventos em saúde.

O tema surge após um levantamento da associação, realizado em novembro de 2023 com as operadoras associadas, indicar que o custo com terapias de transtorno do espectro autista (TEA) e globais do desenvolvimento representaram 9,13% do custo médico, enquanto os tratamentos oncológicos representaram 8,7%. O crescimento do tratamento de autismo foi de 74,38%, segundo a entidade.

A complexidade do tratamento, envolvendo uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde, com ampla carga horária e plano individualizado, é um dos principais motivos do alto custo, que pode variar de 3 mil a 20 mil reais mensais. Contudo, clínicas do segmento apontam que é incompatível a comparação, já que o tratamento de câncer possui medicamentos e outras terapias com custo fixo, além de ser por um período.

Buscando uma melhor relação com as operadoras, clínicas têm prestado consultorias sobre as características do tratamento, construindo pacotes que delimitam os custos sem limitar o acesso e demonstrando o desenvolvimento do paciente ao longo do tratamento. A expectativa é que desta forma, as operadoras possam escolher prestadores para montarem uma rede qualificada. Entretanto, ainda há o desafio sobre a falta de profissionais qualificados e questões regionais.

“O que acontece é que muitas das clínicas utilizam a estrutura como creche, substituindo o ambiente familiar e escolar. Muitas vezes as operadoras recebem pedidos de 100 horas só no ambiente clínico. Antes de falar de custos é preciso saber qual a diretriz de tratamento correto”, defende Cassio Ide Alves, superintendente médico da entidade.

Em 2022, a ANS  estabeleceu que as consultas e sessões com psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas eram ilimitadas, contemplando a cobertura para tratamentos de transtornos globais de desenvolvimento (TGD), incluindo o transtorno do espectro autista (TEA). Segundo as operadoras, isso provocou o aumento exponencial de custos relativos aos tratamentos sem critérios, e por isso requer diretrizes.

Em resposta, a ANS promoveu em outubro de 2023 uma audiência pública para receber subsídios sobre o tema. Porém, a agência afirma, em nota enviada ao Futuro da Saúde, que “as contribuições estão sendo analisadas e ainda precisam ser apreciadas pela Diretoria Colegiada”, mas não informou quando isso deve ser feito.

Cenário e custos do tratamento de autismo

O Centers for Disease Control and Prevention (CDC), órgão de saúde dos Estados Unidos, aponta que 1 a cada 36 crianças possui algum nível de transtorno do espectro autista. Isso equivale a cerca de 5,6 milhões de brasileiros, mas a falta de informação é um dos principais responsáveis pelo baixo índice de diagnóstico. Nos últimos anos, porém, o tema vem se tornando cada vez mais popularizado.

“Existem vários aspectos que justificam esse aumento da incidência, como um componente genético e os profissionais mais capacitados para olhar e entender o que de fato é. No passado tínhamos adultos e idosos que eram diagnosticados como esquizofrênicos”, explica Kamilly Guedes, diretora de Child Assessment na Genial Care, rede de clínicas especializada neste tipo de transtorno.

Com esse aumento de diagnósticos, há uma falta de clínicas especializadas e que possam dar conta da demanda. Ainda, após a mudança nas regras da ANS, o setor aponta que houve um boom de novas clínicas, que nem sempre cobram valores considerados adequados para esse mercado, com casos de operadoras que chegaram a ter uma cobrança de 80 mil reais mensais para um único caso.

“Os beneficiários com TEA têm direito a um diagnóstico correto, feito por um profissional neurologista, pediatra ou psiquiatra experiente, usando as ferramentas adequadas para esse diagnóstico, como um manual de diagnóstico e estatística de transtornos mentais. A partir do diagnóstico, eles têm direito a uma proposta de intervenção terapêutica, que sempre é multidisciplinar. Também têm direito a um plano terapêutico individualizado, pois cada indivíduo é diferente do outro, trazendo objetivos a serem reavaliados periodicamente”, defende Cassio Ide Alves, superintendente médico da Abramge.

O tratamento de autismo em média varia de acordo com a demanda do paciente – que vai de 20 a 40 horas. Geralmente, é realizado com o apoio de psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, mas pode incluir fisioterapeutas e nutrólogos. Isso porque por ser tratar de um espectro, cada criança pode ter dificuldades de fala, motora e sociais em níveis diferentes, e por isso o tratamento é individualizado.

Cada um desses profissionais estimula o paciente por um período de horas semanais, para que possam desenvolver as habilidades necessárias. É muito comum que pais ou responsáveis passem 5 horas por dia em uma clínica, com as crianças em consultas e sessões. Apesar de ser um tratamento que requer acompanhamento ao longo de toda a vida, a infância é o período de maior capacidade cerebral para se adaptar e evoluir com os aprendizados.

“A complexidade do tratamento de autismo pode estar atrelada aos aspectos do desenvolvimento, e uma boa avaliação vai dar essas respostas, mas também pode estar atrelada aos contextos sociais que essa criança está inserida. Só que a gente também precisa entender que junto com TEA existe uma porcentagem muito alta de comorbidades associadas. Existem pessoas que têm TEA e deficiência intelectual,  TDAH, transtorno motor ou transtornos alimentares. O que com certeza impacta no custo”, observa Guedes, da Genial Care.

Padrão de tratamento?

De acordo com Erasmo Casella, membro da Comissão Científica da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNi),os principais tratamentos que possuem evidência científica são a terapia baseada na Análise do Comportamento Aplicada (ABA, sigla para Applied Behavior Analysis) e o método Denver, que apesar de ser derivado da primeira é mais focado em crianças menores.

O médico, que também é professor livre docente de neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), explica que o método ABA envolve exatamente o trabalho multidisciplinar para desenvolvimento do paciente em diferentes áreas.

No entanto, não é possível estabelecer um padrão único que englobe diferentes tipos de pacientes. “Uma ideia é ter protocolos para níveis diferentes, que digam quantas horas é o tratamento recomendado. De 20 a 40 horas é o ideal, sendo a carga máxima para casos graves incluindo o terapeuta na escola. Porque a criança pequena com TEA não se relaciona, não fica sentada por muito tempo e se desliga dos outros”, explica Casella.

A ideia vai no sentido do que a Abramge defende. Apesar de não ser possível criar um tratamento único, a entidade afirma que é preciso criar uma diretriz de utilização, indicando quais devem ser os profissionais que irão realizar os atendimentos e o método com evidência científica, reforçando que as operadoras não devem limitar o tratamento.

“As terapias comportamentais que são as mais utilizadas atualmente para o autismo, principalmente a terapia ABA, começaram há 40 anos nos Estados Unidos. Mesmo lá, existe uma limitação da quantidade de profissionais. E o que eles fizeram, que a gente poderia fazer aqui também, foi uma hierarquização do tratamento. O diagnóstico, por exemplo, vai ser feito por um profissional de excelência, que faz a proposta de intervenção terapêutica. Então, um profissional supervisionado por ele faz a aplicação. Depois de certo tempo, avalia a evolução e retorna ao médico”, exemplifica o superintendente médico, Cassio Ide Alves.

 A entidade afirma que está buscando parcerias com associações de pacientes com autismo para que possam colaborar na construção dessa diretriz, já que são os principais interessados. Por outro lado, reforça sobre a necessidade de formação de profissionais para qualificar o tratamento.

“Não é tão simples fazer um protocolo, mas é importante para auxiliar os profissionais e juízes decidirem o que fazer, porque acabam aceitando o que o médico recomenda. Fica uma preocupação para o paciente e para o convênio médico, querendo reduzir a carga horária ou fazendo clínicas próprias”, afirma o neurologista Erasmo Casella.

Trabalho nas clínicas e relação com operadoras

“A gente não trabalha com cobrança ilimitada de consulta, é uma forma de gerar transparência para o setor. Trabalhamos com pacote. Quando recebemos o paciente com diagnóstico profissional, desenhamos pacotes de tratamento para o nível 1, 2 e 3. Independente das sessões que irá realizar, está previsto no pacote. É uma forma de combater o desperdício e ações fraudulentas”, explica Eduardo Santana, diretor comercial da Versania no Brasil, que abriu em 2023 sua primeira clínica para autismo, mas planeja mais 5 unidades em 2024.

A empresa tem buscado realizar workshops em operadoras de planos de saúde para explicar como o tratamento funciona e as particularidades do TEA. Na audiência realizada pela ANS, a Versania representou a União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (UNIDAS), mostrando o esforço que tem feito para estreitar as parcerias.

Santana reforça que apesar do custo do tratamento, negligenciar o paciente com o autismo pode sair ainda mais caro aos planos de saúde, já que sem desenvolver habilidades, o beneficiário se torna mais dependente dos serviços de saúde, além de impactar em outras comorbidades, como doenças psicológicas, sobrepeso por déficit no padrão alimentar e complicações ligadas à alimentação. Ainda, do ponto de vista social, a pessoa corre o risco de não estudar ou trabalhar.

“Os custos de saúde aumentaram em todos os setores, e o tratamento de autismo é mais um desses. Esse custo vai continuar aumentando porque o número do diagnóstico continuará subindo. A questão é como a gente gera sustentabilidade. A melhor forma não é limitar o acesso, é de fato qualificar a rede”, defende o diretor comercial da Versania.

A Genial Care é outra clínica que tem trabalhado com grandes planos de saúde no tratamento de TEA. “Temos vários parceiros e cada um tem uma forma de olhar para essa parte de cobrança. A gente se preocupa muito em estabelecer uma relação de confiança com todos os nossos clientes, independente da seguradora e do plano de saúde, e também com as famílias. Somos muito transparentes no que essa criança precisa de atendimento, tanto em relação a carga horária quanto em relação a orientação parental”, explica Kamilly Guedes, diretora de Child Assessment.

A clínica realiza avaliações periódicas para mostrar ao plano de saúde a evolução do paciente. Entretanto, a diretora explica que apesar de a meta ser reduzir o número de horas de tratamento conforme a evolução do paciente, nem sempre isso é a realidade, já que conforme ele desenvolve novas habilidades, novas dificuldades podem surgir.

Tanto a Genial Care quanto a Versania afirmam que a carga horária dos seus pacientes é de no máximo 20 horas, já que entendem que a carga horária de 40 horas, de acordo com o padrão ouro de tratamento, envolve o convívio e desenvolvimento escolar.

Formação e mercado

A falta de profissionais especializados e o aumento da demanda fez surgir clínicas de baixa qualidade e cursos que prometem formação em curta duração. Os especialistas apontam que há recomendação de tratamentos que possam ser abaixo ou acima do necessário, trazendo riscos à saúde dos pacientes.

“Há alguns profissionais que fazem cursos de 1 a 2 fins de semana e começam a trabalhar. Não pode haver coisas desse tipo. Ter uma formação de 6 meses a 1 ano com carga horária pesada, é o ideal. Aos poucos, um supervisor pode avaliar a capacidade deste profissional para cuidar dos pacientes”, defende Erasmo Casella, da Comissão Científica da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNi).

Por isso, é importante que o plano de saúde credencie apenas clínicas sérias e que trabalham com base na ciência. A Abramge tem recomendado que operadoras associadas de regiões fora dos grandes centros urbanos se unam para conseguir contratar profissionais e criarem suas próprias clínicas de atendimento ao TEA.

Eduardo Santana, diretor comercial da Versania no Brasil, reforça que é preciso que as operadoras desenvolvam parceria com clínicas sérias. “Esse vai ser um ano decisivo para as operadoras evoluírem e terem maturidade para a escolha da rede, porque se você olhar na rua, as antigas clínicas de fisioterapia agora tem uma placa ‘Clínica de ABA’. A fisioterapia recebia muito menos do que um tratamento de ABA, então está todo mundo migrando, e com isso a operadora tem que auditar, não está tendo um padrão de qualidade. Existem empresas sérias que precisam ser replicadas para que de fato tenha custo-efetividade”, conclui.

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